A boa sociedade
acreditava em Deus para não falar d’Ele. Como a religião parecia tolerante.
Jean-Paul
Sartre, in As palavras
A noite
agita-se; tanto. A cama fica pequena para um corpo ansioso; em alvoroço. Sonho;
sonho que estou descendo da Penha – que montanha celeste, esta! – e ouço, mesmo
à minha frente, uma manifestação barulhenta que sobe a montanha. Muita gente
jovem; tantos jovens com palavras de ordem em defesa da natureza e do verde em
harmonia pela encosta. E contra o abuso construtivo nas entranhas da natureza.
Tão verde e sagrada!
Na frente do
cortejo dois jovens, educada e serenamente, pedem-me para encostar mais à
parede – ainda distante do grosso da manifestação. Encosto-me, seguindo, a
preceito, o pedido e fico – feliz –, a observar toda aquela energia que berra
contra o apocalipse, lá mais no alto. Mesmo à distância de um olhar sereno,
sensato e verdadeiro. Míope? Não. Dali vê-se o que a luz da planície tenta
esconder. Caramba!
Os jovens têm perspicácias para além do vazio míope dos cotas!
De repente,
vindo do nada, um grupo de curas velhos – todos na reforma das suas paróquias –
que mataram, matando a felicidade dos dias –, desce da montanha em tremendo
decrépito. Que pressa, senhores! Os padres da frente, todas caras bem
conhecidas de outros tempos, endeusam-se; provocando os jovens. Quatro deles, dois
de cada lado de uma cruz enorme e transportada por um homem gigante de bigode
enorme, arvoram-se em tampão, entre a felicidade dos jovens e o silêncio
dourado da montanha. Atrás daqueles corpos esvaídos de sentimento e humanismo, começam
a surgir lentamente uns fiéis, estranhos e zingareando pela estrada. Todos se
arrastam parvos, feitos santos de um qualquer recanto sem luz de um edifício
solene.
Começa uma
provocação. O padre mais à direita ajoelha-se e berra: vamos desfazer esta canalha matando
as suas vontades e os seus desejos de futuro? Fico incapaz de manter o
silêncio entre os braços e salto para o meio daqueles quatro fantasmas cadavéricos
e corcundas, feitos donos do devir. E grito: caros jovens, não provoquem esta
tropa macaca que eles são o diabo! Estão todos mortos. E quando eram vivos foram
fascistas da pior estirpe. Ali está a imagem do padre António que passou por
mim a guinchar e a espalhar lume gritando para os outros três: matemos esta
gente rebelde! Matemos esta gente que impede que as construções subam à
montanha! É claro que recordei, imediatamente, a cara do bandalho mais
importante, tudo o que ele havia feito em vida. Gritei: ele matou seres vivos que
eram, para ele, o símbolo do pecado. Ele cobrou dinheiro, para além das esmolas,
para que pudesse aguentar as vaidades e os luxos com que se exibia em altar
onde a solenidade era mesmo um desejo adiposo. Um dia, quando cheguei à
sacristia da igreja da sua paróquia vi o homem… Calei-me, assustado com o som
terrível de um imenso estrondo.
Passado o trovão
olhei em volta. Só via a alegria dos jovens que corriam em direção a mim. Eram
tantos!
Voltei a
encostar-me ao muro. Com uma felicidade tão solene! Admirando aquela marcha
linda. Passaria, mais à frente, por mais uma construção do diabo, escondida
entre vegetação linda; tão bela! Que tinha aberto mais uma ferida grande na
paisagem que costumava exalar o nevoeiro ténue sobre a cidade.
Acordei, senti
uma vontade enorme de subir a serra de santa Catarina. Não vi nenhum diabo à
solta, mas passei por muitas construções subindo a serra; à montanha verde que
a natureza almeja só verde e calma.
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