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Cerimonial do costume


O homem é um animal em movimento num universo em movimento.
Clara Ferreira Alves, E, 19.07.06

1. Vai com deus e não te esbarres eram as palavras, gritadas em tremenda felicidade, por três crianças. Tão inocentes! Tão coitadas! A mais velha gozava os seus sete, oito anos e as duas mais pequenas com uma diferença de dois anos entre si; diferença também para o mais velho. Era Brito. Por aquela altura, uma freguesia assustadora à noite, sem luz, demasiados ruídos e buracos pelos caminhos e uma desolação total em tempos de inverno.
O vai com deus e não te esbarres era entoado em coro, três putos em uníssono que corriam feitos desalmados, ao lado das bicicletas que deixavam o Bonfim – lugar de referência em Brito por ali ter existido um antigo cemitério – em direção a Pevidém. Nomes sonantes na caravana: Manuel, Casimiro, José e António.
Como eles gostavam de pedalar nas suas pasteleiras vistosas rumo aos seus empregos em Pevidém! Outros tempos! Aquele grupo de grandes amigos (o meu pai usava a palavra parceiros), rumava ao seu trabalho noturno na Sociedade Têxtil Albano Coelho Lima, S.A.R.L; depois Coelima, S.A..
Ponto final. Já me falta fôlego.

2. Na sexta-feira, dia 20 de dezembro, chorei num armazém da empresa J. Pereira Fernandes, em S. Jorge de Selho. A empresa criada por João Pereira Fernandes que, paulatinamente, criou uma referência têxtil na vila de Pevidém.

3. Obrigado Capivara Azul. Obrigado Teatro Coelima. Obrigado Inês Vila Cova. Obrigado Excentricidade. Fizeram-me reviver memórias intensas de uma realidade triste que para nós, crianças felizes com o pouco que nos restava, eram gritos de felicidade. Foram tempos de crescimento que nos trouxeram ao futuro.
Tempos tristes? Foram tempos que o tempo não apagará. Tempos sinceros e realistas. Num tempo em que as memórias são cada vez mais apagadas da Memória é obrigatório reter o que aconteceu na sexta-feira, dia 20 de dezembro.

4. Entre a dor do abandono – sim o meu pai dormia durante o dia e a minha mãe, atravessando o monte de Currelos que separa as localidades de Brito e S. Jorge de Selho, logo a seguir ao almoço entrava no turno da tarde (eram as bobinadeiras, não eram mãe?) da Coelima e o meu pai na mesma fiação (eram os abridores, não eram, pai?). Restavam pela casa e pelo lugar três crianças: a Ana, a Adelaide e eu.

5. Do que vi e ouvi ao vivo e no ecrã, vinco o essencial: as memórias, mesmo as mais dolorosas, são memórias que nos inquietam por momentos e tempos. Era o ano de 1976! E era janeiro.
Tenho um poema dessa altura, escrito no mês de maio:

Gosto de ser da Coelima
por ser muito grande e boa.
E por estar por cima
de todas as de Lisboa.

É grande e muito bela.
Bem organizada está.
É por isso que gosto dela
e por isso estou cá.

Sou um pequeno trabalhador.
Mas tudo se arranjará.
Ainda que seja com suor!

Então continuarei lá
a trabalhar com ardor
O resto logo se verá.

Nota de rodapé: felizmente, para além das memórias, existe a vontade e a resiliência.
Segunda nota de rodapé: é claro que este soneto retrata um contexto muito próprio; impossível nos dias que correm. Tinha 15 anos; porra!

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